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#FEMINISMO

Amores gordos e exclusões

Reflexões sobre a gordofobia em relações não monogâmicas

Agnes Arruda*, para AzMina
#FEMINISMO11 de set. de 234 min de leitura
Arte: Kath Xapi
Agnes Arruda*, para AzMina11 de set. de 234 min de leitura

Mesmo sem muitas ilusões do amor romântico, nunca na minha vida havia pensado em me relacionar não-monogamicamente… Até entrar em um relacionamento assim; e lá se vão quase dois anos. Não é muito, eu sei, mas nesse período tive tempo suficiente para conhecer e experimentar algumas coisas e, inclusive, entender que o lugar designado para a mulher gorda nesse rolê também atende a algumas normas e padrões, mesmo que ninguém fale ou queira admitir.

Ser uma pessoa desconstruída em relação a determinados pontos de opressão não significa se desconstruir por completo. Mesmo que a não monogamia te abra um universo de possibilidades para se relacionar com outras pessoas, invariavelmente essas relações ainda estão atravessadas por uma enorme quantidade de marcadores sociais do preconceito, e a gordofobia é um deles.

Talvez por eu ter todo um histórico de mulher gorda que se relacionou cisheteronormativa e monogamicamente, eu já desconfiasse que as coisas seriam mais ou menos assim. Foi exatamente o que aconteceu: minhas relações não monogâmicas, até então, acontecem invariavelmente em um núcleo formado quase que exclusivamente por pessoas gordas. Uma ou outra escapa. Não conseguia, no entanto, desvendar o dilema de: era eu que procurava por essas pessoas ou esse era um fluxo natural do processo?

Daí que colocar isso à prova nos mais diferentes ambientes da não monogamia tem sido interessantíssimo, pelo menos em alguns aspectos. A princípio, seria a não monogamia o espaço ideal para quebrar essas amarras do preconceito… só que não é bem assim.

ÚNICA POSSIBILIDADE DE SE RELACIONAR? 

É na não monogamia que muitas pessoas fora do padrão – e isso inclui as gordas – veem a oportunidade de ao menos estar em alguma relação, uma vez que sabemos que os ideais de relacionamento monogâmico, em especial os cisheteronormativos, não privilegiam em nada as dissidências – ainda mais as mulheres que não se conformam aos modelos cristãos, patriarcais e capitalistas de relação.

Mas se por um lado isso parece ser algo bom, por outro o risco de novamente entrarmos em relações tóxicas, sob o pretexto de serem “livres” e “fluidas”, é enorme.  A pessoa gorda é apenas uma das múltiplas opções que a pessoa magra tem para escolher se relacionar. Mas o contrário não se aplica nem em uma mínima proporção, como em relações sociais ou espaços diversos. Aconteceu comigo, e não faz muito tempo não, viu?

Em um evento acadêmico sobre não monogamia, o discurso e a prática não se alinharam. Em uma integração entre as pessoas participantes isso ficou nítido: mesmo desconhecidas umas das outras, elas se agruparam entre si por semelhança estética. As poucas gordas do evento ficaram segregadas em uma única mesa, que também abrigava outras dissidências, como pessoas trans e não binárias.

IGNORANDO AS GORDAS 

Observar isso acontecer foi um tanto quanto assustador, principalmente porque, em um momento anterior, o assunto “corpos gordos e não monogamia” havia sido levantado por mim mesma, justamente pela ausência da pauta na discussão que aquele seminário estava propondo. Depois de balançarem suas cabeças afirmativamente para mim e me aplaudirem “pela coragem”, no entanto, as pessoas voltaram para seus lugares de privilégio magro e continuaram a ignorar as gordas que estavam ali.

Sem forças para um novo discurso, saí de fininho com os amores que estavam comigo no dia – outras duas pessoas gordas, óbvio. Durante o evento, essas pessoas também apontaram outros silenciamentos identitários latentes na programação, como a não binaridade e a bissexualidade masculina, por exemplo.

De mãos dadas pelas ruas de São Paulo, refletimos sobre o gueto gordo da não monogamia. Nosso amor gordo, assim como nossos corpos, transborda e transgride até mesmo em espaços ditos sem amarras e transgressores; e não é porque a gente quer. Nossa simples existência é capaz de fazer isso. Que continuemos ocupando nosso espaço.

*Agnes Arruda é jornalista, mestre e doutora em Comunicação. Autora de “O Peso e a Mídia: as faces da gordofobia” (Alameda, 2021), do infantil “Medusa: a história que não te contaram” (2020) e do “Pequeno Dicionário Antigordofóbico” (Provocare, 2022). Tem se dedicado a mostrar como a gordofobia age e retroage na vida das pessoas, em especial nos processos de comunicação. Faz a difusão do seu trabalho científico no projeto Tamanho Grande, disponível na web, incluindo suas redes sociais.

Esta coluna foi originalmente publicada pela Revista AzMina, em: https://azmina.com.br/colunas/nao-monogamia-amores-gordos-e-exclusoes/

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